sexta-feira, abril 21, 2006

QUANDO DEMOCRACIA É MAIS DO QUE UMA PALAVRA

Muito se ouve e se discute conceitos de liberdade, de ética, de respeito às diferenças e, certamente, democracia é um desses conceitos que de tão público e instaurado, às vezes é mais fácil definir do que, evidentemente, vivenciar.

Aconteceu certa vez no Além da Imaginação, um episódio marcante. Foi logo quando Lucio e eu abrimos o espaço, talvez dois meses depois. O Além era um lugar múltiplo por natureza e por isso mesmo, atraia para seu convívio o mais diverso tipo de gente, gostos e idades.

No início da tarde a sala ainda estava vazia e recebi a visita de um rapaz dos seus, mais ou menos 14, 15 anos. Cabelo bem curto tipo militar, calça comprida e camisa social, sapatos de verniz engraxados – o que chamou muito a minha ateão, pois fugia do uniforme padrão da garotada: camiseta, jeans e tênis.

Chegou devagar, meio desconfiado, observou o espaço, verificou os títulos dos livros, as HQ`s, os jogos e parou no balcão onde ficavam os fanzines expostos para venda. Mexeu em um, em outro e aí chegou perto de mim e educadamente quis saber qual era o procedimento para ele deixar seus fanzines para vender. Expliquei que eles ficavam expostos, que o sistema era de consignação, ou seja, ele receberia pelo que vendesse; nós colocávamos um pequeno percentual sobre o valor dele e a cada mês, na data marcada, realizávamos o acerto do pagamento. Ele concordou e então tirou do envelope pardo que carregava sob o braço, um maço de folhas xerocadas em preto e branco e grampeadas, características inconfundíveis dos fanzines.

Os fanzines são como um jornal no qual seus autores escrevem, compilam, montam, desenham, opinam sobre seus temas prediletos e apaixonantes. Assim, muitos são sobre televisão e cinema, poesia e livros, artistas diversos, histórias em quadrinhos e o que mais os jovens quiserem expressar. Sim, os fanzines são um tipo de mídia quase que exclusiva de adolescentes e jovens e nós, no Além da Imaginação, mantínhamos um espaço cativo para a circulação deste veículo de informação.

Ele me entregou um exemplar e, naquele momento, fui testada sobre o tal conceito de democracia, liberdade de expressão e que tais.

Logo na primeira página, estampado em preto havia uma cruz suástica e, mais abaixo uma reprodução de Hitler discursando.

A cabeça deu pane! Depois de tudo que sabemos sobre a guerra, o terceiro reich, as atrocidades dos campos de concentração, a perseguição dos inocentes, dos diferentes, o massacre de milhões como, por Deus, como ainda tinha gente que não rejeitava tamanha tirania? Em que meio vivia aquele garoto, para estar entranhado por tais enganos ?

Meu assombro era visível e o rapaz, comentando que já sabia que não haveria espaço para seu trabalho ali, ia guardando o fanzine quando eu o detive. Pensei em Voltaire que dizia “posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas lutarei até o fim para que tenhais o direito de dizê-las”. Fiquei com meia dúzia de exemplares mas alertei-o que o público que freqüentava o Além não compraria sua mensagem. Entretanto ela estaria exposta e que daqui há um mês, ele voltasse. Se nada tivesse sido vendido, ele retiraria o material definitivamente.

Durante aquele mês recebemos todos os tipos de reclamações indignadas, das queixas mais simples aos brados mais veementes, de que era um absurdo intolerável fazer propaganda nazista. Para todos eu lembrava a frase de Voltaire, porque na verdade, minha recusa em expor aquele fanzine seria mera censura, ato autoritário, negação de uma realidade – terrível, é bem verdade! - na qual ainda existem nazistas. Pessoas que se sentem superiores as outras e que defendem todos os benefícios sociais, legais e humanos apenas para si mesmos, em detrimento de todo o resto !

Sou pela verdade. “A verdade vos libertará” está escrito em algum lugar e eu compartilho a verdade por mais dolorosa que possa ser, pois só quando encaramos nossos medos, nossos monstros, quando resolvemos conhecer e enfrentar os obstáculos é que realizamos a jornada do herói, o caminho do auto-conhecimento, nossos passos para a iluminação .

Lucio é um democrata vibrante em cada célula de sua existência, por isso ficou ao meu lado, incondicionalmente, e pontificou com seu imenso conhecimento debates acalorados sobre o totalitarismo em todas as suas manifestações. De fato,foi um mês muito rico em discussões, leituras, reflexões sobre esse tema que nos esquenta as vísceras.

O tempo sabiamente se fez presente e o mês acabou.

O rapaz voltou na data marcada, pontualmente, com seu cabelo curtinho, seu uniforme particular e o envelope pardo em baixo do braço. Cumprimentou-me formalmente, foi até a estante dos fanzines, contou-os – estavam todos lá – guardou-os, agradeceu e partiu. Nunca mais voltou. Não soube mais dele ou da mensagem que desejava divulgar.

Marcou-me profundamente sua presença rígida, séria, angustiadamente silenciosa.

Isso aconteceu em meados de 1989. Hoje aquele rapaz é um homem. Imagino como será, por onde andará, o que pensa e como age aquele jovem, hoje.

E escrevo sobre este fato só para lembrar como pode ser difícil mantermos nossos ideais, nossos conceitos e valores, quando colocados à prova. Ele, em seu engano, foi colocado à prova e submeteu-se a ela. Eu, em minha coerência, também fui colocada à prova e também me submeti a ela. É claro que para quem pensa como ele, a equivocada sou eu e tenho dúvidas se teriam a mesma compreensiva tolerância que tive. Talvez não. Talvez sim.

Democracia talvez não seja mesmo tão simples assim.

Que tal refletirmos mais profundamente sobre isso ?

Lu Abbondati

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