sábado, agosto 19, 2006

O PODER OCULTO DO CINEMA

Quando ouço pessoas falando que o cinema irá morrer com o advento dos home theather e dos DVDs, me espanta a dimensão da ignorância humana.

Desde criança ouço um ditado que diz: “O cinema é a maior diversão”. Uma expressão tão válida quanto a limitada afirmação de que a principal função das escolas é retirar os jovens das ruas – explicação adequada a presídios e não a um local formador de seres humanos.

O problema é que em nossa sociedade, são definições como estas que determinam as condutas humanas e sendo assim, da mesma forma em que a escola acabou por se transformar em depósito e não em local de aprendizado, o cinema está se transformando num local de diversão, visto apenas como passatempo e que pode ser substituído com vantagens por um bom aparelho de DVD e um telão.

Acontece que não pode. Suas verdadeiras características não podem ser reproduzidas em uma sessão doméstica, como veremos a seguir.

Por incrível que pareça em sua história, o cinema continua sendo uma mídia de informação ainda não compreendida em sua totalidade, tanto pelo público quanto por aqueles que efetivamente o fazem. E desta desinformação, emergem conceituações estapafúrdias que, longe de contribuir para sua manutenção e continuidade, levam cada vez menos pessoas as salas de exibição, agravando mais ainda a absoluta ignorância de suas vantagens, com visível prejuízo social.

O meio cinematográfico é muito mais do que um mero passatempo ou parte de uma indústria de diversões caça-níqueis, como muitos detratores salivam ao afirmar.

Ele também passa ao largo de ser unicamente uma forma de arte, como querem fazer crer respeitados diretores e cineastas, que descambam para definições simplistas. Do alto de escassas imaginações, ouvi e li em vários depoimentos de profissionais do meio, absurdos inesquecíveis que podem ser sintetizados aqui, nestas duas frases:

- “O cinema não deve ser usado para contar histórias, é um meio com a única finalidade de se fazer arte. Aos que quiserem contar histórias, sugiro procurarem a TV!!!”

Através de uma opinião tão abalizada quanto limitada, depreende-se que para eles, o meio físico é o um dos principais determinantes da arte fílmica, senão o único e sendo assim, já que o cinema é arte e como arte não deve se curvar a ser inteligível, o cinema não deveria ser inteligível. Ponto! A TV não, esta é algo que prevê em seu “produto” uma palavrinha delicada para certo grupo de cineastas, um início, meio e fim, o que a baniria para sempre de ser um meio artístico...

Acontece que a arte não está no veículo ou na ferramenta utilizada e sim na competência do artista em manifestar sua intenção. Encontra-se nos olhos de quem faz e vê e não nos meios que emprega.

Comparar suportes físicos de características diversas como a TV e o Cinema, apenas por que ambos exibem filmes, é como considerar a escultura e a pintura, privilegiando uma sobre a outra, apenas por que ambas lidam com a imagem.

O veículo de uma imagem deveria indicar apenas como uma manifestação pode ser vista e não determinar sua qualidade. Nenhum meio é menor, apenas o pensamento limitado o faz assim, solapando a curiosidade e a capacidade de pensar novas soluções.

O cinema tem sim, certas características que a TV não pode duplicar, não importa o seu tamanho. E isto se prende a condições privilegiadas que o meio apresenta, as quais mesmo os produtores diretos não entendem ou se aproveitam. Vamos a elas:

  • Para ir ao cinema precisa-se sair de casa, o que implica intenção e escolha de um filme, descobrir onde este está passando, qual o horário adequado, dispor das condições materiais para pagar o ingresso, vestir-se, usar um meio de transporte para chegar ao cinema, comprar o ingresso (o que agrega um valor ao que vai ser visto) e etc.

Tudo isto para o cérebro, atua como um ativador automático de funções, semelhante ao que nos mobiliza em direção a um trabalho ou obrigação urgentes, exceto que neste caso, o fator atuante é o PRAZER, o que cria receptividade automática para o que será dito ou visto na tela. E tudo atua como novidade para os instrumentos de percepção corporal: o cheiro da sala de exibição, as acomodações físicas do lugar, o local aonde se sentar e as respectivas sensações táteis da poltrona, o encontro com outras pessoas e seus diferentes rostos, os diversos sabores dos confeitos, pipoca, refrigerantes, chocolates, encontrados na bomboniere e etc.

É um verdadeiro parque de diversões sensoriais para o cérebro! Estimula toda a sorte de sinapses que a casa, lugar mais que conhecido e sítio das rotinas domésticas, não pode substituir. Nossas lembranças se formam pela introdução de novos fatos através da área de memória recente e esta arquiva o relevante na área da memória antiga, mas apenas se estes diferem dos registros de rotina. E é por este motivo que muitas pessoas nem se recordam se trancaram ou não portas, trouxeram ou não celulares consigo, desligaram ou não as luzes da casa e etc. Rotinas já estabelecidas equivalem a ações automáticas, com ausência de pensamento por parte do cérebro, na sua execução. Uma vida repleta de rotinas poupa tempo na hora de fazer as coisas, mas também incapacita o indivíduo para lidar com o que ele não conhece – um problemão num mundo em transformação vertiginosa, onde situações novas surgem de forma inesperada a toda hora.

Sair de casa por vontade própria para exercer um prazer, é exercitar o cérebro no uso de sensações combinadas (tátil, visual, auditiva, olfativa, gustativa e decisória), o que se torna cada vez mais raro hoje em dia, num mundo de obrigações impostas que freqüentemente estabelecem rotinas a serem seguidas. Assistir um filme em casa, sentando no mesmo local que já se conhece, fazendo as mesmas coisas, com todas as sensações já familiares, é simplesmente não desfrutar do novo - um bom método para criar limo mental..

  • Não há home-theather que simule o fato de que se está longe da geladeira doméstica e daquela fome que aparece do nada...! Ou mesmo do confortável banheiro de casa! Quantos desligam o telefone, celular ou interfone, ao assistirem filmes em casa, para não interromper a sessão? Como prestar completa atenção na trama, sem ser requisitado por filhos, parentes, vizinhos e amigos a qualquer minuto? Como relaxar e deixar para trás o pensamento das contas e obrigações que deverão ser feitas amanhã ou logo depois do filme?

  • A tela do cinema e suas imagens gigantescas, preenchem todo o nosso campo de visão; a cadeira de espaldar alto nos acomoda e abraça; o frio do ar condicionado nos envolve; o som com efeito “surround” nos cerca de todos os lados, transmitindo não apenas impulsos auditivos, mas também tátil-sensoriais com vibrações de baixa freqüência. O escuro garante que nossa atenção não possa ser desviada por nada, pois NADA está visível a não ser a o que vem da tela, o que torna esta mensagem comparável a uma sessão de hipnose, com impacto determinante no teor da mensagem.

Por uma hora e meia, em média, o espectador entregar-se-á de corpo e alma a percepção do enredo, do contexto onde os personagens se inserem e para eles transferirá seus desejos e emoções. Nada pode ser mais eficiente que isso, como meio de recepção. Dizia Frank Capra, um dos poucos diretores que perceberam e utilizaram este potencial em toda a sua plenitude que, ao produzir cada filme, assumia a enorme responsabilidade de não esmagar a esperança de seus espectadores e, aproveitando-se das condições favorecidas acima, incumbia-se de entregar-lhes uma mensagem tão poderosa que estes poderiam sair dos cinemas com um potencial transformador bem inscrito em suas almas.

Este sim, é o verdadeiro poder do cinema – a transformação do espectador.

Uma vez que o cérebro não distingue experiências reais das simuladas, já que ambas entram através do mesmo sistema sensorial e produzem ação nos mesmos sítios cerebrais, fisgado pela mensagem que lhe chega da tela, ele não poderá esquivar-se a mudar seu estado de espírito. Filmes que fazem rir liberarão endorfina sem nenhuma dificuldade e alegrarão o espectador, mesmo que este esteja deprimido. Em contra-partida, um filme que solape suas crenças e valores, também poderão deixá-lo arrasado. Já aquele que o faça refletir, o tornará questionador e o que o encantar, o arrebatará. E tudo isto, lembremos, em uma hora e meia de mensagem ininterrupta, sem competição de qualquer tipo de interferência física, em uma sala totalmente escura, através de uma brilhante tela que ocupa todo o campo visual, com som chegando aos ouvidos sem obstáculos, enquanto o corpo vibra com baixas freqüências, transmitindo sensações táteis.

Isso é dinamite pura para o cérebro!!!

Para deprimidos, 90 minutos de uma comédia equivalem a uma dose reforçada de anti-depressivos. Para idosos e acomodados mentais, uma hora e meia de exercício concentrado num “spa” para o cérebro, ao preço de um ingresso; para crianças, encantamento puro e magia num mundo tão cru e para o adulto, uma permissão para a reflexão sobre uma enorme gama de temas, sem resistência dos preconceitos. Daí a importância de se perceber seu real potencial. Nas mãos de um bom artista, um filme construirá vidas, nas de um irresponsável, marcará o espectador com sua incompetência.

A medicina é uma das principais áreas que muito se beneficiaria se utilizasse mais a ida as salas de exibição como um recurso terapêutico regular. Como médico, muitas vezes faço a indicação de filmes como instrumento de reflexão e questionamento para as pessoas que precisam repensar a condição de vida em que se encontram, em pacientes em estado depressivo, nos déficits de memória e nos estágios iniciais do Mal de Alzheimer, com resultados surpreendentes.

Como recurso cultural, o cinema é extraordinariamente necessário em sua função de propiciar encantamento, alegria e emoção e no seu todo, extrapola e muito, a condição de ser um simples local para a exibição de filmes.

E algumas pessoas ainda acham que seria possível prescindir de um instrumento com este potencial... Elas deviam mesmo é ir mais ao cinema, para exercitar sua percepção e sensibilidade.

Lucio Abbondati Jr

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Me parece muito otimismo ver tudo isso no Cinema.

Hé pessoas, por exemplo, que simplismente não consegue ou não se deixam envolver nisso tudo que você falou. Que o pouco interesse que tem pela sala de cinema é pelo aspecto técnico.

Além, achar que o Cinema pode "mudar as coisas" não é um pouco demais?

Abraços!

7:46 AM  
Blogger Lucio Abbondati Jr Lucia Vasconcellos Abbondati said...

É exatamente aí que reside o x da questão, Arnoud.

Não depende tanto da pessoa se ela se envolve no filme - o filme é que se entranha nela (parafraseando Fernando Pessoa...)

Em hipnose, quando uma mensagem não encontra resistência por parte do código moral do paciente, é assimilada sem questionamento e se incorpora a ele.

Como o meio físico do cinema é, por suas características, favorecido pela falta de interferências externas à mensagem do filme, como descrevi anteriormente, ele funciona como um equivalente a uma grande sessão de hipnose, por mais engraçado que isso possa parecer.

Não havendo uma resistência direta a mensagem por parte espectador, querendo ele ou não, algo ficará.

Quanto ao efeito transformador, eu o vejo em meus pacientes a toda hora e por isso ressaltei o fato. É uma ferramenta extraordinária, que só lastimo serem poucas as pessoas a utilizem com essa finalidade, seja para a saúde ou para a cultura. Tratam-na apenas como passatempo... Que se há de fazer, não é?

De qualquer forma, apreciei muito o seu comentário, Arnoud!!

Um grande abraço!

Lucio Abbondati Jr

10:27 PM  
Anonymous Anônimo said...

Só para entender direito.

Você propõe que se faça filmes direcionados para tratar certos males ou para incentivar determinados comportamentos?

Outra coisa é o lance de a mensagem não encontrar resistência por parte do "paciente". O q eu quis dizer no meu primeiro comentário foi que muitas pessoas(a maior parte?) tem essa resistência. Talvez até por terem sido condicionadas a isso.

Abraços!

8:18 AM  
Blogger Lucio Abbondati Jr Lucia Vasconcellos Abbondati said...

Na verdade Arnoud, eu espero que esta mídia continue a ser feita do mesmo modo, com toda uma variedade de filmes e manifestações culturais diversas. Na forma de fazê-los não interferiria em nada na criatividade do diretor. Eu apenas gostaria que estes entendessem melhor a extensão do que suas produções podem alcançar, junto ao público. A produção de filmes unicamente voltados para pedagogia do indivíduo seria desvirtuar a mídia e acabar com sua universalidade. Deus nos livre de um cinema dirigido, como ocorre em países totalitários!!! Hitler (Goebels) usou o cinema desta forma negativa, para esmagar a imagem dos judeus (aaarg...), junto ao povo alemão.

O que proponho realmente é que os profissionais de cultura, saúde, educação, pais e pessoas interessadas olhem para esta mídia por sua capacidade intrínseca e que, acompanhem a variedade do que é exibido semanalmente mais de perto, para que aconselhem as pessoas com as quais tenham contato, como formadores de opinião que são, para que que assistam os filmes interessantes e que tenham um conteúdo relevante, endossando-os. De posse do conhecimento que estes podem ser utilizados como função de instrução privilegiada, deixem de tratar esta mídia como mero passatempo, tão irrelevante quanto qualquer outro. Para as pessoas de hoje, ir ao cinema e assistir um DVD do filme em casa é a mesma coisa. Não é. Um filme com um contexto de reflexão interessante tem um potencial de interferência multiplicado n vezes, se for visto no cinema. Esperar para ver no âmbito doméstico reduziria o seu impacto. Como produtor cultural e médico, quando aconselho a meus pacientes ou ouvintes a ir ao cinema ver determinados filmes, o faço já tendo assistido previamente muitos dos filmes que se encontram em exibição e na variedade, ter selecionado o que pode ser útil ou relevante às pessoas a quem endereço meu trabalho. Nas palestras, cursos e seminários que eu e Lu ministramos, nós os utilizamos de forma freqüente, com excelente resposta. Vale ressaltar aqui, que nós utilizamos filmes ditos "comerciais", do grande circuito, por exemplo "O 13o Guerreiro", para falar de comunicação entre diferentes povos, ética, ombridade, cooperação, etc, assim como tantos outros ditos "não pedagógicos". São filmes considerados comuns, o que os diferencia é o olhar que lhes é aplicado (dizia Oscar Wilde que a arte está no olho de quem vê...).

Quanto a resistência ao que é dito, igual à hipnose, havendo conflito entre o que é apresentado e o código moral do indivíduo, este simplesmente rejeita a mensagem, mas ao fazê-lo, ainda assim, põe-se a rechecar a validade dos conceitos que defende. Há um ganho tanto para quem recebe a mensagem sem se opor e a incorpora, quanto para aquele que reavalia se o que acredita continua válido ou não. Não é interessante?

Um grande abraço e obrigado por este estimulante debate.

Lucio e Lu

12:11 PM  
Anonymous Anônimo said...

Creio que entendi bem o seu ponto. E, do modo colocado, tenho pouco a questionar.

De minha parte, adquiro DVDs de filmes clássicos e os assisto tanto como diversão como de maneira crítica em relação à história, filosofia, relacionamentos humanos, etc.

Muito bom seu blog. Já tens um novo fã.

1:21 PM  
Blogger Philipe said...

Concordo. Excelente texto.
Queria poder assinar em baixo.

Mas falando em cinema...
Aposto que você se lembra de uma história do Laerte ( aquele cara mesmo dos Piratas do Tietê) onde um cara é atropelado por um motoqueiro misterioso. Quando sai a lua cheia, ele vira uma moto.
È uma reconstrução Kafkiana do mito do lobisomem na perspectiva urbana.
Lembra? Pois é. Então, eu fiquei amigo do Laerte e ele me deixou fazer essa história em filme. Será eum curtinha bem legal. Terminamos a pré-produção e começo a filmar no dia 30 desse mês, em Juiz de Fora.
È um projeto 0800, sem grana nenhuma quase, mas eu consegui. Vai ser minha primeira direção em película (finalmente!) um trabalho hercúleo pra um cara que nem é formado em cinema.
Consegui convencer muita gente que dava. E vamos captar em película editar em digital, fazer efeitos hollywoodianos ( aqui em casa, hahaha) e voltar com o material bruto para a película.
MAs o ponto onde eu queria chegar é:
O cinema é muito discutido enquanto meio de recepção. Poucos grandes e inacessíveis estúdios criam, a massa consome. Eu acho que o advento da revolução digital vai mexer muito esse caldo. Caras que como eu até agora estavam limitados ao contexto do espectador sairão de sua confortável situação para se transformar em geradores de material. Sob este prisma, não posso negar que talvez o cinema como era até dois anos atrás pode reaalmente acabar. Mas se acabar, acaba para um novo cinema renascer. Sou feliz por ser parte desta revolução.

3:36 PM  

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