quarta-feira, setembro 20, 2006

DA SAUDÁVEL E FANTÁSTICA INUTILIDADE

Espera-se de um homem responsável, no mínimo, que ele cumpra suas obrigações e que encontre sua serventia no mundo... “A obrigação vem em primeiro lugar”; reza o mote calejado.

Propomos então a nossos filhos que se tornem úteis, que sirvam e cumpram seus deveres, ensinando-os a procurar uma função na existência. Dizemos a eles: - Assim é a vida, o normal. Naquilo que estabelecemos como normalidade, entretanto, não percebemos devidamente a força das palavras com que constantemente nos expressamos. Na maioria das vezes, empregamo-las, sem sequer questionar sua validade e conseqüência.

Quando instruímos nossos filhos para que se tornem úteis, esquecemo-nos que o termo utilidade aplica-se melhor a coisas que podem ser usadas, que se desgastam até a destruição. Sabemos para que servem as coisas úteis: de um capacho esperamos poder limpar os pés; da vassoura, varrer o lixo e da lixeira, contê-lo; de um elevador, nos transportar contra as forças da gravidade, para cima e para baixo, sem variações ou surpresas... As coisas que nos cercam são úteis ferramentas no dia a dia, mas, sem dúvida alguma, continuarão sempre sendo apenas objetos, meios para servir a uma função.

Quando esperamos que nossos filhos encontrem uma serventia na vida, termo que no passado se aplicava bem a escravos, não questionamos muito se é realmente isto o que pretendíamos – transformar-lhes na versão de tempo presente de modernos servos - os robôs - sem alternativas ou vontade própria. Lembremo-nos sempre que:

- Quem faz suas obrigações, o faz por ser obrigado, não por exercício de vontade;

- Arca com impostos, aquele que sofre imposições e ameaças;

- Torna-se útil, tudo o que se permite ser usado;

Estas palavras não deviam ser as únicas nem as principais a serem ensinadas aos filhos, para que estes se tornem homens responsáveis. Melhor seriam empregadas se aplicadas a objetos e não a crianças, acostumando-as a serem tratados como coisas, com função definida. Não o somos ferramentas ou utilitários ou ao menos, não devíamos ser.

As pessoas acostumaram-se a não mais questionar a perda de sua humanidade. Vivemos num mundo onde se deixa de acordar por que o sono descansou o corpo; desperta-se para ir ao trabalho; cumprir um programa de obrigações. Normal, dizem todos...

Não se come mais para saciar a fome, nem esta é quem sinaliza a necessidade de repor reservas; engole-se rápido um alimento em 60 minutos cravados; para se correr de volta a cumprir o programa de obrigações pré-estabelecidas. Normal, bradam novamente.

Não se dorme por que o sono nos lembra de repor energias e sim por que a jornada estipulada do programa de obrigações determina a hora necessária para acordar, estabelecida pelo timer robótico do contrato de trabalho. Normal, dizem por aí, muito à contra-gosto.

Anseia-se desesperadamente por 30 dias de liberdade em 335 de escravidão, numa aceitação que de isso é o normal, já que a maioria o faz, sem questionar.

Rendendo o esperado ou não, todos concordam em cumprir uma carga fixa de horário no serviço, mesmo isto instale o enfado, o desencanto, a desilusão e o descaso em todos que ali estão por imposição da obrigação, reduzindo a tão ansiada produtividade. São as horas em que me lembro dos antigos livros de história do Brasil, que explicavam por que os escravos da África foram trazidos para trabalhar aqui – “...por que nossos índios se mostraram preguiçosos e indolentes para o trabalho na lavoura, na condição de escravos”. O que esperavam os senhores da época, naquelas condições? Alegres índios cantores como num musical, indo para a labuta escrava, com empenho e perseverança? Qualquer semelhança entre nosso comportamento “indígena preguiçoso e indolente” e o estado de ânimo dos atuais trabalhadores, não será mera coincidência...

Vive-se mais emoção na novela, no Big Brother, na fofoca diária do jornal, no desempenho do time do coração, na reunião da novena ou na sessão do templo, do que na vida pessoal, onde escasseiam opções e decisões próprias de cada indivíduo, com fins de semana aterradoramente monótonos, até que a segunda-feira chegue e novas obrigações determinem a todos como ocupar o dia e a atenção.

E esperamos que nossos adolescentes anseiem para se tornarem adultos... Mas logo esta espécie de adulto – o escravo consentido? Não admira que se droguem cada vez mais e se desesperem. É o resto de lucidez que lhes resta, lhes dizendo que o viver adulto é insano.

No afã de inculcarmos esta pretensa normalidade mecânica nas crianças, pouco nos lembramos, contudo, da importância da inutilidade... Dos atos que praticamos em nome não da serventia, mas do exercício da curiosidade, da criação e da experimentação; as ações que são desencadeadas pelo ato da escolha e decisão pessoal,sem obrigatoriedade.

Se validássemos a idéia de que tudo na vida deveria ter uma finalidade pragmática, teríamos que ignorar toda e qualquer manifestação artística. Afinal, para que serve a arte? Na prática, para nada!!! E ainda bem, pois se esta se pusesse exclusivamente a serviço da obrigação, tudo se resumiria a uma linha de montagem padronizada.

Pelo princípio da utilidade, por que uma pessoa deveria perder tempo escrevendo uma poesia? Ou pintando? Para que buscar o belo na escrita, se as coisas devessem ser sempre simplificadas e uniformes? E compor uma música então? Outra inutilidade de quem vive “cigarreando” em vez de obrar como uma formiga operária...

Confunde-se ainda hoje, a inutilidade do ato, com o vazio da nulidade, pois não se reconhece como válido o ato criador não voltado para a produção do ganho financeiro e pessoal. Com isso, desqualifica-se o talento de cada indivíduo. A criação, quando movida apenas pela obrigação, nada mais é que uma nova imposição. Há de se permitir a existência do criar, pelo criar. Toda manifestação artística decorre de um ato inútil, contudo, essencial, pois dela surgem as correções de rumo que marcam o caminho do homem neste planeta.

Quem se dedica ao inútil por uma pulsão interna, o faz como exercício de vontade, não porque foi obrigado ou por condições impostas, mas por que expressa em sua criação, o ânima, que o faz vivo. Aqueles que se permitem exercitar inutilidades, manifestam-se através de sua criação, que lhes propiciará continuidade. Os que abdicam de fazer escolhas e conformam-se em seguir ordens e obrigações, agonizam lentamente por dentro no dia a dia, sentindo que o tempo se esvai e as forças lhes faltam, sempre que se dirigem para o exercício da útil obrigação diária.

Nossa sociedade atual martela ainda uma velha cantilena decrépita de que o trabalho faz o homem, oriunda de um tempo onde existiam corporações que nominavam pessoas por sua profissão e assim eram tratados – Herr Bauer (senhor padeiro), Mr. Smith (senhor ferreiro). Muitos levam isso tão à sério ainda hoje, que até se qualificam por seu ofício, confundindo-se com ele de forma indissolúvel (...aquele é o Dr. Fulano de tal).

O adestramento social quanto a esta conduta é tanto, que em algumas pessoas causa estranheza encontrar profissionais fora de seu ambiente de trabalho, como o médico, o odontologista, a professora e outros, em supermercado, cinema ou divertindo-se, como se seu mundo fosse confinado ao local de trabalho. Estranha-se que um profissional não esteja disponível a qualquer hora do dia ou da noite, pois espera-se que ele “exista” apenas para servir. E este é apenas um dos riscos do homem assumir ser apenas a função que exerce. Limitado a uma simples utilidade, não alcança todo o seu potencial.

A todos é ensinado que devem satisfazer-se com sua função e utilidade. Pedem-nos que nos orgulhemos de nossa utilidade na vida e do cumprimento de nossas obrigações. Quantos, entretanto, são ensinados a orgulhar-se de seus atos inúteis? Dos gestos que produzem inutilidades essenciais como a arte? Quantos hoje são estimulados a praticar alguma atividade por simples exercício da vontade, espontânea, criação pela criação, apenas para ver no que irá dar? Muito poucos. E por isso mesmo, poucos são os humanos que mantém intacto quando adultos, o seu talento.

Diz a revista Exame de agosto de 2006, que 38.000 postos de trabalho no alto escalão não encontram quem os ocupe, o que vem desencadeando uma desenfreada guerra pelo aliciamento de funcionários eficientes das empresas. Falta nos postulantes aos cargos, em tudo semelhantes no número de MBAs e universidades, qualidades essenciais como talento, iniciativa, visão, criatividade, capacidade de pensar por si mesmo e adaptabilidade - qualificações que não podem ser ensinadas através de fórmulas prontas, cursos de renome ou leitura de manuais de gerência e marketing.

Num mundo de padronização de condutas, modas impostas por modelos pré-fabricados, onde pessoas procuram se transformar em clones de quem está em evidência, é o ato inútil que prepara alguém para o ainda inexplorado, para lidar com a descoberta com encantamento e não com o terror da ignorância do que fazer.

Neste 21o século de mudanças tão drásticas quanto inesperadas, é justamente no exercício do talento criativo e não num simples título profissional, que repousa a única e verdadeira forma de reconhecer o valor e distinguir um ser humano do outro.

Lucio Abbondati Jr

quinta-feira, setembro 14, 2006

HISTÓRIA PREMIADA

Lu Abbondati (ou, para quem conhece, Lucia Vasconcellos), minha parceira produtora cultural há 18 anos, tem mais qualidades insuspeitas do que a maioria das pessoas conhece. Na Bienal de Livros do Rio de Janeiro, em 2003, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) a agraciou como escritora, com a menção honrosa no Concurso Pró-Leitura. Seu texto “Buck não lia jornais”, delicioso, fala do saborear da leitura quando associada à curiosidade, com encanto e singeleza. Em homenagem a vocês, eu os contemplo com ele. Boa leitura!!!


BUCK NÃO LIA JORNAIS

Lucia Vasconcellos (Lu Abbondati)

Quinta-feira, 16 horas.

- Crianças! Turmaaa! “Hora da História” ...!

- Ah, não! A tarde está tão bonita... Nós preferimos brincar aqui fora, professora - disse impositivamente a menina ruiva.

- É isso aí! Essa coisa de “Hora da História” é uma chatice! Não tem história legal! - reclamou um menino.

- É sempre a mesma coisa - completa Gracie. E empoando a voz – “ Então crianças, qual a moral da história? O que podemos aprender com a fábula “ A lebre e a tartaruga “?

- Que primeiro temos que vencer, depois dormir! - grita assanhada Mariana, fazendo todos os trejeitos que adora.

- Ah, professora, as histórias são todas iguais, tudo coisa pra criancinha! Eu já tenho dez anos, a Gracie também, a Mariana faz dez no mês que vem; o Filipe e o Bruno têm quase onze! Só Priscila que tem nove, mas ela também já entende tudo e acha uma droga essa coisa de príncipe encantado, bichos que falam e finais felizes, não é mesmo Priscila?

Todos olham para a menina, que tenta responder:

- Bem, na verdade eu até que gos...

- Pois é - interrompe Olga - A gente não quer mais perder tempo com essa história de “Hora da História”. Encheu! Cansou !

Eulália percebeu que estava num momento crítico. Precisava de uma nova estratégia, eficiente, para que aquelas crianças não se perdessem, não se afastassem, talvez definitivamente, das histórias, dos livros.

A turma estava em balbúrdia. Satisfeitos pensavam que haviam se livrado de mais uma obrigação chata. Não conseguiam compreender o valor das histórias. Haviam passado do tempo no qual a fantasia e o sonho imperavam, o bem sempre vencia o mal, onde tartarugas e lebres, bem como bonecas de pano e sabugos de milho falavam, viviam. Era agora ou nunca e ela tinha que acertar. Respirou fundo e batendo palmas e assobiando, conseguiu a atenção da turma.

- Muito bem, muito bem, disse ela em bom tom. Acho que vocês têm razão.

- Êeeeh! - bagunça geral.

- Alô, alô, vocês têm razão quando dizem que não são mais criancinhas, que querem coisas mais apropriadas para sua idade. Não, não, Mariana, nada de desfile de moda agora. Sente-se !

- Ah, droga! - fez a menina num muxoxo.

- Quero que vocês afastem as carteiras e fechem as cortinas, prosseguiu Eulália.

- Todas? - indagou Filipe.

- Sim, todas.

- Mas prá que, professora ?

- Vamos abrir espaço aqui no meio da sala e... assim, assim mesmo, Bruno, quero todos sentados no chão, um ao lado do outro. Sem assanhamento, vamos!

- No final das contas vamos ter história - comenta rabugentamente Olga.

- Sim, vamos. Mas esta é uma história bem diferente das que vocês conhecem e além do mais quero que vocês falem, perguntem o que quiserem, comentem o que der vontade enquanto conto a história. Está bem?

Isso era diferente, muito diferente do que estavam acostumados: ouvir em silêncio até o fim e só depois comentar o que haviam ouvido, etc., etc.. Todos se entreolharam vivamente, antecipando uma bagunça divertida e, claro, nenhuma história.

A professora começou.

- Este é um livro de aventura para adultos e jovens e foi escrito há muito tempo. O nome do autor é Jack London e a história chama-se “Chamado Selvagem”. Começa assim: “ Buck não lia jornais.”

- Não lia... Não lia porquê professora, era burro ? - instigou Olga.

- Ele prefere livros! - gracejou Filipe.

- Vai ver que não sabia ler - disse Mariana.

- Então era burro! - insistiu a outra.

- Podia ser só pequeno, sua boba! Meu irmãozinho de quatro anos não sabe ler porque só tem quatro anos.

- É, mas tem adulto que também não sabe ler, é burro! - reforçou a primeira.

A professora Eulália sorria feliz. Percebeu que acertara na escolha e que, rapidamente, antes que percebessem, estariam em silêncio, ávidos, escutando, imaginando... Será?!

- Quem mais não sabe ler? - Perguntou então. Só gente sabe ler, é isso ?

Todos concordaram meneando as cabeças.

- Então, quem será Buck? Uma criança pequena, um menino que não aprendeu a ler ainda, como o irmãozinho da Mariana? Ou talvez um adulto que não teve oportunidade, mas que ainda poderá aprender a ler? Ou ainda uma pessoa burra ?

- Ou um bicho - arriscou Bruno - Bichos não sabem ler, a não ser que seja mais uma fábula, porque aí todos os bichos falam, lêem, cantam, fazem tudo.

- O que vocês acham, meninos ? Pode ser um bicho ?

- Ué, professora, como é que a gente vai saber? - perguntou Mariana.

- Que tal a gente deixar a professora Eulália contar a história? - argumentou Gracie - Assim não saímos da primeira frase!

- Ah! Muito obrigada, Gracie. Todos concordam? Ótimo! Continuemos.

E assim, naquela “Hora da História” as crianças conheceram Buck, um grande cão peludo, que vivia numa boa casa, com alimento e abrigo e que não sabia, mas sua vida iria mudar muito, completamente.

Muitas outras “Horas da História” foram necessárias para que toda a aventura fosse contada. Muitas mesmo, mas no fim, as quintas-feiras, às 16 horas eram os horários mais ansiosamente esperados por todos. Dezenas de desenhos foram criados, todos os sentimentos vivenciados e certamente, milhares de perguntas foram feitas, mapas foram vasculhados para se conhecer melhor a trajetória do cão herói nas terras geladas do Alasca.

” Buck não lia jornais.”, mas enriqueceu com muitos livros, escritas e histórias a vida daquelas crianças a partir de então.



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