quinta-feira, setembro 14, 2006

HISTÓRIA PREMIADA

Lu Abbondati (ou, para quem conhece, Lucia Vasconcellos), minha parceira produtora cultural há 18 anos, tem mais qualidades insuspeitas do que a maioria das pessoas conhece. Na Bienal de Livros do Rio de Janeiro, em 2003, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) a agraciou como escritora, com a menção honrosa no Concurso Pró-Leitura. Seu texto “Buck não lia jornais”, delicioso, fala do saborear da leitura quando associada à curiosidade, com encanto e singeleza. Em homenagem a vocês, eu os contemplo com ele. Boa leitura!!!


BUCK NÃO LIA JORNAIS

Lucia Vasconcellos (Lu Abbondati)

Quinta-feira, 16 horas.

- Crianças! Turmaaa! “Hora da História” ...!

- Ah, não! A tarde está tão bonita... Nós preferimos brincar aqui fora, professora - disse impositivamente a menina ruiva.

- É isso aí! Essa coisa de “Hora da História” é uma chatice! Não tem história legal! - reclamou um menino.

- É sempre a mesma coisa - completa Gracie. E empoando a voz – “ Então crianças, qual a moral da história? O que podemos aprender com a fábula “ A lebre e a tartaruga “?

- Que primeiro temos que vencer, depois dormir! - grita assanhada Mariana, fazendo todos os trejeitos que adora.

- Ah, professora, as histórias são todas iguais, tudo coisa pra criancinha! Eu já tenho dez anos, a Gracie também, a Mariana faz dez no mês que vem; o Filipe e o Bruno têm quase onze! Só Priscila que tem nove, mas ela também já entende tudo e acha uma droga essa coisa de príncipe encantado, bichos que falam e finais felizes, não é mesmo Priscila?

Todos olham para a menina, que tenta responder:

- Bem, na verdade eu até que gos...

- Pois é - interrompe Olga - A gente não quer mais perder tempo com essa história de “Hora da História”. Encheu! Cansou !

Eulália percebeu que estava num momento crítico. Precisava de uma nova estratégia, eficiente, para que aquelas crianças não se perdessem, não se afastassem, talvez definitivamente, das histórias, dos livros.

A turma estava em balbúrdia. Satisfeitos pensavam que haviam se livrado de mais uma obrigação chata. Não conseguiam compreender o valor das histórias. Haviam passado do tempo no qual a fantasia e o sonho imperavam, o bem sempre vencia o mal, onde tartarugas e lebres, bem como bonecas de pano e sabugos de milho falavam, viviam. Era agora ou nunca e ela tinha que acertar. Respirou fundo e batendo palmas e assobiando, conseguiu a atenção da turma.

- Muito bem, muito bem, disse ela em bom tom. Acho que vocês têm razão.

- Êeeeh! - bagunça geral.

- Alô, alô, vocês têm razão quando dizem que não são mais criancinhas, que querem coisas mais apropriadas para sua idade. Não, não, Mariana, nada de desfile de moda agora. Sente-se !

- Ah, droga! - fez a menina num muxoxo.

- Quero que vocês afastem as carteiras e fechem as cortinas, prosseguiu Eulália.

- Todas? - indagou Filipe.

- Sim, todas.

- Mas prá que, professora ?

- Vamos abrir espaço aqui no meio da sala e... assim, assim mesmo, Bruno, quero todos sentados no chão, um ao lado do outro. Sem assanhamento, vamos!

- No final das contas vamos ter história - comenta rabugentamente Olga.

- Sim, vamos. Mas esta é uma história bem diferente das que vocês conhecem e além do mais quero que vocês falem, perguntem o que quiserem, comentem o que der vontade enquanto conto a história. Está bem?

Isso era diferente, muito diferente do que estavam acostumados: ouvir em silêncio até o fim e só depois comentar o que haviam ouvido, etc., etc.. Todos se entreolharam vivamente, antecipando uma bagunça divertida e, claro, nenhuma história.

A professora começou.

- Este é um livro de aventura para adultos e jovens e foi escrito há muito tempo. O nome do autor é Jack London e a história chama-se “Chamado Selvagem”. Começa assim: “ Buck não lia jornais.”

- Não lia... Não lia porquê professora, era burro ? - instigou Olga.

- Ele prefere livros! - gracejou Filipe.

- Vai ver que não sabia ler - disse Mariana.

- Então era burro! - insistiu a outra.

- Podia ser só pequeno, sua boba! Meu irmãozinho de quatro anos não sabe ler porque só tem quatro anos.

- É, mas tem adulto que também não sabe ler, é burro! - reforçou a primeira.

A professora Eulália sorria feliz. Percebeu que acertara na escolha e que, rapidamente, antes que percebessem, estariam em silêncio, ávidos, escutando, imaginando... Será?!

- Quem mais não sabe ler? - Perguntou então. Só gente sabe ler, é isso ?

Todos concordaram meneando as cabeças.

- Então, quem será Buck? Uma criança pequena, um menino que não aprendeu a ler ainda, como o irmãozinho da Mariana? Ou talvez um adulto que não teve oportunidade, mas que ainda poderá aprender a ler? Ou ainda uma pessoa burra ?

- Ou um bicho - arriscou Bruno - Bichos não sabem ler, a não ser que seja mais uma fábula, porque aí todos os bichos falam, lêem, cantam, fazem tudo.

- O que vocês acham, meninos ? Pode ser um bicho ?

- Ué, professora, como é que a gente vai saber? - perguntou Mariana.

- Que tal a gente deixar a professora Eulália contar a história? - argumentou Gracie - Assim não saímos da primeira frase!

- Ah! Muito obrigada, Gracie. Todos concordam? Ótimo! Continuemos.

E assim, naquela “Hora da História” as crianças conheceram Buck, um grande cão peludo, que vivia numa boa casa, com alimento e abrigo e que não sabia, mas sua vida iria mudar muito, completamente.

Muitas outras “Horas da História” foram necessárias para que toda a aventura fosse contada. Muitas mesmo, mas no fim, as quintas-feiras, às 16 horas eram os horários mais ansiosamente esperados por todos. Dezenas de desenhos foram criados, todos os sentimentos vivenciados e certamente, milhares de perguntas foram feitas, mapas foram vasculhados para se conhecer melhor a trajetória do cão herói nas terras geladas do Alasca.

” Buck não lia jornais.”, mas enriqueceu com muitos livros, escritas e histórias a vida daquelas crianças a partir de então.



1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Lembrei da inesquecível consulta sobre a Escola do Porto... a qual fiz mensão no trabalho de Socilogia na faculdade mais tarde mais tarde... na época era para aula de Filosofia e o professor não gostou muito de algumas coisas que escrevi no texto em relação a afastar os jovens das drogas, ele alegou que muitos pensadores extremamente importantes escreviam ótimos pensamentos usando drogas, alucinógenos, não me recordo da palavra que ele disse, mas acredite foi basicamente isso.
Bom eu nunca usei drogas então nem tenho o que dizer... nem de condenar, mas na época agente falava tanto de ser afastar das drogas que acabei escrevendo "na inocência".

Hoje eu estou só me recordando de coisas...

Queria poder ter todos os meus professores preocupados com o meu interesse e rendimento escolar... tô passando por um mal momento na faculdade em relação as notas... e como estudante posso dizer que é complicado...

Muito bom esse texto na medida que me faz lembrar o chato sistema educacional que vivemos e torcer pra que em um ato, em uma chance tudo isso mude e eu me apaixone pelas aulas que eu tenho ido muito mal, que haja uma "peineiragem" dos "soberanos mestres", os "sabe tudo" nas faculdades ou qualquer instituição privada ou pública educacional.

8:35 PM  

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