Quando ouço pessoas falando que o cinema irá morrer com o advento dos home theather e dos DVDs, me espanta a dimensão da ignorância humana.
Desde criança ouço um ditado que diz: “O cinema é a maior diversão”. Uma expressão tão válida quanto a limitada afirmação de que a principal função das escolas é retirar os jovens das ruas – explicação adequada a presídios e não a um local formador de seres humanos.
O problema é que em nossa sociedade, são definições como estas que determinam as condutas humanas e sendo assim, da mesma forma em que a escola acabou por se transformar em depósito e não em local de aprendizado, o cinema está se transformando num local de diversão, visto apenas como passatempo e que pode ser substituído com vantagens por um bom aparelho de DVD e um telão.
Acontece que não pode. Suas verdadeiras características não podem ser reproduzidas em uma sessão doméstica, como veremos a seguir.
Por incrível que pareça em sua história, o cinema continua sendo uma mídia de informação ainda não compreendida em sua totalidade, tanto pelo público quanto por aqueles que efetivamente o fazem. E desta desinformação, emergem conceituações estapafúrdias que, longe de contribuir para sua manutenção e continuidade, levam cada vez menos pessoas as salas de exibição, agravando mais ainda a absoluta ignorância de suas vantagens, com visível prejuízo social.
O meio cinematográfico é muito mais do que um mero passatempo ou parte de uma indústria de diversões caça-níqueis, como muitos detratores salivam ao afirmar.
Ele também passa ao largo de ser unicamente uma forma de arte, como querem fazer crer respeitados diretores e cineastas, que descambam para definições simplistas. Do alto de escassas imaginações, ouvi e li em vários depoimentos de profissionais do meio, absurdos inesquecíveis que podem ser sintetizados aqui, nestas duas frases:
- “O cinema não deve ser usado para contar histórias, é um meio com a única finalidade de se fazer arte. Aos que quiserem contar histórias, sugiro procurarem a TV!!!”
Através de uma opinião tão abalizada quanto limitada, depreende-se que para eles, o meio físico é o um dos principais determinantes da arte fílmica, senão o único e sendo assim, já que o cinema é arte e como arte não deve se curvar a ser inteligível, o cinema não deveria ser inteligível. Ponto! A TV não, esta é algo que prevê em seu “produto” uma palavrinha delicada para certo grupo de cineastas, um início, meio e fim, o que a baniria para sempre de ser um meio artístico...
Acontece que a arte não está no veículo ou na ferramenta utilizada e sim na competência do artista em manifestar sua intenção. Encontra-se nos olhos de quem faz e vê e não nos meios que emprega.
Comparar suportes físicos de características diversas como a TV e o Cinema, apenas por que ambos exibem filmes, é como considerar a escultura e a pintura, privilegiando uma sobre a outra, apenas por que ambas lidam com a imagem.
O veículo de uma imagem deveria indicar apenas como uma manifestação pode ser vista e não determinar sua qualidade. Nenhum meio é menor, apenas o pensamento limitado o faz assim, solapando a curiosidade e a capacidade de pensar novas soluções.
O cinema tem sim, certas características que a TV não pode duplicar, não importa o seu tamanho. E isto se prende a condições privilegiadas que o meio apresenta, as quais mesmo os produtores diretos não entendem ou se aproveitam. Vamos a elas:
- Para ir ao cinema precisa-se sair de casa, o que implica intenção e escolha de um filme, descobrir onde este está passando, qual o horário adequado, dispor das condições materiais para pagar o ingresso, vestir-se, usar um meio de transporte para chegar ao cinema, comprar o ingresso (o que agrega um valor ao que vai ser visto) e etc.
Tudo isto para o cérebro, atua como um ativador automático de funções, semelhante ao que nos mobiliza em direção a um trabalho ou obrigação urgentes, exceto que neste caso, o fator atuante é o PRAZER, o que cria receptividade automática para o que será dito ou visto na tela. E tudo atua como novidade para os instrumentos de percepção corporal: o cheiro da sala de exibição, as acomodações físicas do lugar, o local aonde se sentar e as respectivas sensações táteis da poltrona, o encontro com outras pessoas e seus diferentes rostos, os diversos sabores dos confeitos, pipoca, refrigerantes, chocolates, encontrados na bomboniere e etc.
É um verdadeiro parque de diversões sensoriais para o cérebro! Estimula toda a sorte de sinapses que a casa, lugar mais que conhecido e sítio das rotinas domésticas, não pode substituir. Nossas lembranças se formam pela introdução de novos fatos através da área de memória recente e esta arquiva o relevante na área da memória antiga, mas apenas se estes diferem dos registros de rotina. E é por este motivo que muitas pessoas nem se recordam se trancaram ou não portas, trouxeram ou não celulares consigo, desligaram ou não as luzes da casa e etc. Rotinas já estabelecidas equivalem a ações automáticas, com ausência de pensamento por parte do cérebro, na sua execução. Uma vida repleta de rotinas poupa tempo na hora de fazer as coisas, mas também incapacita o indivíduo para lidar com o que ele não conhece – um problemão num mundo em transformação vertiginosa, onde situações novas surgem de forma inesperada a toda hora.
Sair de casa por vontade própria para exercer um prazer, é exercitar o cérebro no uso de sensações combinadas (tátil, visual, auditiva, olfativa, gustativa e decisória), o que se torna cada vez mais raro hoje em dia, num mundo de obrigações impostas que freqüentemente estabelecem rotinas a serem seguidas. Assistir um filme em casa, sentando no mesmo local que já se conhece, fazendo as mesmas coisas, com todas as sensações já familiares, é simplesmente não desfrutar do novo - um bom método para criar limo mental..
- Não há home-theather que simule o fato de que se está longe da geladeira doméstica e daquela fome que aparece do nada...! Ou mesmo do confortável banheiro de casa! Quantos desligam o telefone, celular ou interfone, ao assistirem filmes em casa, para não interromper a sessão? Como prestar completa atenção na trama, sem ser requisitado por filhos, parentes, vizinhos e amigos a qualquer minuto? Como relaxar e deixar para trás o pensamento das contas e obrigações que deverão ser feitas amanhã ou logo depois do filme?
- A tela do cinema e suas imagens gigantescas, preenchem todo o nosso campo de visão; a cadeira de espaldar alto nos acomoda e abraça; o frio do ar condicionado nos envolve; o som com efeito “surround” nos cerca de todos os lados, transmitindo não apenas impulsos auditivos, mas também tátil-sensoriais com vibrações de baixa freqüência. O escuro garante que nossa atenção não possa ser desviada por nada, pois NADA está visível a não ser a o que vem da tela, o que torna esta mensagem comparável a uma sessão de hipnose, com impacto determinante no teor da mensagem.
Por uma hora e meia, em média, o espectador entregar-se-á de corpo e alma a percepção do enredo, do contexto onde os personagens se inserem e para eles transferirá seus desejos e emoções. Nada pode ser mais eficiente que isso, como meio de recepção. Dizia Frank Capra, um dos poucos diretores que perceberam e utilizaram este potencial em toda a sua plenitude que, ao produzir cada filme, assumia a enorme responsabilidade de não esmagar a esperança de seus espectadores e, aproveitando-se das condições favorecidas acima, incumbia-se de entregar-lhes uma mensagem tão poderosa que estes poderiam sair dos cinemas com um potencial transformador bem inscrito em suas almas.
Este sim, é o verdadeiro poder do cinema – a transformação do espectador.
Uma vez que o cérebro não distingue experiências reais das simuladas, já que ambas entram através do mesmo sistema sensorial e produzem ação nos mesmos sítios cerebrais, fisgado pela mensagem que lhe chega da tela, ele não poderá esquivar-se a mudar seu estado de espírito. Filmes que fazem rir liberarão endorfina sem nenhuma dificuldade e alegrarão o espectador, mesmo que este esteja deprimido. Em contra-partida, um filme que solape suas crenças e valores, também poderão deixá-lo arrasado. Já aquele que o faça refletir, o tornará questionador e o que o encantar, o arrebatará. E tudo isto, lembremos, em uma hora e meia de mensagem ininterrupta, sem competição de qualquer tipo de interferência física, em uma sala totalmente escura, através de uma brilhante tela que ocupa todo o campo visual, com som chegando aos ouvidos sem obstáculos, enquanto o corpo vibra com baixas freqüências, transmitindo sensações táteis.
Isso é dinamite pura para o cérebro!!!
Para deprimidos, 90 minutos de uma comédia equivalem a uma dose reforçada de anti-depressivos. Para idosos e acomodados mentais, uma hora e meia de exercício concentrado num “spa” para o cérebro, ao preço de um ingresso; para crianças, encantamento puro e magia num mundo tão cru e para o adulto, uma permissão para a reflexão sobre uma enorme gama de temas, sem resistência dos preconceitos. Daí a importância de se perceber seu real potencial. Nas mãos de um bom artista, um filme construirá vidas, nas de um irresponsável, marcará o espectador com sua incompetência.
A medicina é uma das principais áreas que muito se beneficiaria se utilizasse mais a ida as salas de exibição como um recurso terapêutico regular. Como médico, muitas vezes faço a indicação de filmes como instrumento de reflexão e questionamento para as pessoas que precisam repensar a condição de vida em que se encontram, em pacientes em estado depressivo, nos déficits de memória e nos estágios iniciais do Mal de Alzheimer, com resultados surpreendentes.
Como recurso cultural, o cinema é extraordinariamente necessário em sua função de propiciar encantamento, alegria e emoção e no seu todo, extrapola e muito, a condição de ser um simples local para a exibição de filmes.
E algumas pessoas ainda acham que seria possível prescindir de um instrumento com este potencial... Elas deviam mesmo é ir mais ao cinema, para exercitar sua percepção e sensibilidade.
Lucio Abbondati Jr